ODS 1
Num país de bacharéis, o valor dos novos doutores

Investimento em pesquisa e extensão torna as universidades ainda mais relevantes para o futuro
 
		
			
	
 Um dos muitos argumentos em jogo na defesa da universidade pública contra os ataques empreendidos pelo atual governo está no fato de que, no Brasil, as universidades ensinam, formam e são também centros de pesquisas científicas. Essa combinação produziu a recente declaração: “O Brasil já tem doutor demais”, o que não deixa de ser verdade, se considerarmos a nossa tradição de bacharéis. A ligação entre pesquisa, ensino e extensão – atividades que são oferecidas pela universidade ao seu público extenso, ou seja, que está fora dela – não é trivial e torna a universidade ainda mais importante. No entanto, a tripla responsabilidade faz com que seja difícil perceber o que, no orçamento, é para formação – cursos de graduação voltados para qualificação de mão de obra no mercado de trabalho – e que uma parte muito significativa dos recursos é voltada para pesquisa científica.
Um dos muitos argumentos em jogo na defesa da universidade pública contra os ataques empreendidos pelo atual governo está no fato de que, no Brasil, as universidades ensinam, formam e são também centros de pesquisas científicas. Essa combinação produziu a recente declaração: “O Brasil já tem doutor demais”, o que não deixa de ser verdade, se considerarmos a nossa tradição de bacharéis. A ligação entre pesquisa, ensino e extensão – atividades que são oferecidas pela universidade ao seu público extenso, ou seja, que está fora dela – não é trivial e torna a universidade ainda mais importante. No entanto, a tripla responsabilidade faz com que seja difícil perceber o que, no orçamento, é para formação – cursos de graduação voltados para qualificação de mão de obra no mercado de trabalho – e que uma parte muito significativa dos recursos é voltada para pesquisa científica.
Leia mais reportagens da série #100diasdebalbúrdiafederal
Um bom exemplo da dificuldade de explicar essa diferença entre formação e pesquisa pode ser dado com o caso de um médico que, tendo completado sua graduação em Medicina, decide continuar na universidade como pesquisador. Na faculdade – o que inclui a residência médica, os estágios etc – , o médico deve aprender a atender pacientes na sua especialidade, fazer diagnósticos, pedir e analisar exames e tudo mais que envolve o bom exercício da medicina. Quando decide fazer doutorado, o mesmo médico se dedicará a pesquisar um determinado problema científico – por exemplo, a cura do câncer – e, para esse processo, fará uma pesquisa de mestrado e doutorado, podendo, se a pesquisa assim exigir, passar um período numa instituição internacional onde haja pesquisadores com quem vá trocar informações e resultados. Também como resultado desse trabalho de pesquisa, pode haver um período de estágio pós-doutoral, um instrumento útil de intercâmbio de pesquisadores entre instituições nacionais ou internacionais, mas que chamo de estágio apenas para pontuar que pós-doutorado não é titulação, é mera continuação formal da pesquisa.
Gostando do conteúdo? Nossas notícias também podem chegar no seu e-mail.
Veja o que já enviamosNa nossa tradição bacharelesca, já houve um tempo em que qualquer homem branco de terno e gravata devia ser chamado de “doutor”, máximo da reverência a uma “autoridade”. Hoje, é possível que um jovem negro, depois de ter feito pré-vestibular comunitário na favela da Maré, ter concluído uma graduação e um mestrado, esteja realizando uma pesquisa para ser doutor na sua área de atuação
[/g1_quote]Ao final do doutorado, o médico defende uma tese, significa dizer que apresenta por escrito os resultados de seu trabalho e se habilita, agora sim, a ser chamado de doutor. Se, no senso comum, o médico já é chamado respeitosamente de “doutor”, porque haveria de cursar mestrado e doutorado para ser “doutor”? Porque é pela pesquisa que os tratamentos se modificam, que novas descobertas são feitas, novos medicamentos, outras abordagens para doenças e assim por diante. O que parece fácil de entender no exemplo da medicina é que nem sempre esse médico PhD irá optar por ser professor, embora isso possa ocorrer, mas é evidente para a maioria das pessoas que há mercado de trabalho para que ele exerça a medicina em hospitais e consultórios.
O mesmo não acontece em muitas outras carreiras nas quais o profissional que conclui uma pesquisa de doutorado seguirá trabalhando como pesquisador e como professor. Importante dizer que é assim não apenas nas ciências humanas, mas também nas exatas: um físico, um químico ou um biólogo são profissionais que podem ter doutorado em suas áreas e se manter na universidade. Para isso, serão necessariamente pesquisadores e professores. Salvo raras exceções – como em alguns centros de pesquisa na Unicamp –, para ser pesquisador é preciso ser professor, embora o contrário não seja verdadeiro, já que é possível apenas lecionar sem fazer pesquisa, dependendo da área de atuação e da universidade.
Apesar de todas as dificuldades, o Brasil tem um excelente acervo de teses e dissertações disponíveis on-line, em parte consequência do fato de que, já que essas são realizadas com recursos públicos, seus resultados devem estar disponíveis e acessíveis ao conjunto da sociedade. Além das iniciativas das próprias universidades de oferecer seus bancos de teses, uma plataforma da Capes permite a consulta de grande parte da produção nacional realizada em programas de pós-graduação no país. Convido leitores e leitoras a consultar ali qualquer tese de doutorado e se dedicar a ler a página de agradecimentos.
Além dos reconhecimentos protocolares, como agências de fomento, professores e instituições, o que aparece em qualquer página de agradecimento de uma tese de doutorado, não importa de que área for, é o quanto aquele trabalho foi realizado a partir da formação de uma rede que inclui professores, dentro e fora do Brasil, outros colegas de pesquisa, amigos, parceiros afetivos, sem os quais a pesquisa não teria sido realizada. Há quem agradeça ao psicanalista – tempos difíceis –, ao fisioterapeuta – horas e horas sentada no computador lendo e escrevendo – e até ao cardiologista, como foi o meu caso. Para além do objeto da pesquisa, o que um recém-doutor construiu foram laços para além dos seus vínculos originários, não a fim de destruí-los ou ignorá-los, mas para ampliar sua inserção social e cultural além dos limites dados no seu percurso familiar.
Se pudermos compreender um doutorado nesse sentido mais amplo – uma pesquisa temática que forma um pesquisador, cujo mercado de trabalho muitas vezes é exclusivamente a docência e que alarga os horizontes de compreensão do mundo ou de pelo menos parte dele –, o Brasil ainda tem doutor de menos. Na nossa tradição bacharelesca, já houve um tempo em que qualquer homem branco de terno e gravata devia ser chamado de “doutor”, máximo da reverência a uma “autoridade”. Hoje, é possível que um jovem negro, depois de ter feito pré-vestibular comunitário na favela da Maré, ter concluído uma graduação e um mestrado, esteja realizando uma pesquisa para ser doutor na sua área de atuação. Significa dizer que, com seu diploma de doutorado, entre tantas coisas que se abrem no futuro, abre também a possibilidade de mudar o passado colonial de dominação dos bacharéis.
[g1_quote author_description_format=”%link%” align=”none” size=”s” style=”solid” template=”01″]7/100 A série #100diasdebalbúrdiafederal pretende mostrar, durante esse período, a importância das instituições federais e de sua produção acadêmica para o desenvolvimento do Brasil.
[/g1_quote]Últimas do #Colabora
Relacionadas
 
							Professora de Ética do Departamento de Filosofia da UFRJ, mestre e doutora em Filosofia (PUC-Rio), e pesquisadora da teoria feminista. Coordena o laboratório "Escritas - filosofia, gênero e psicanálise" (UFRJ/CNPq). É autora, entre outros, de "Duas palavras para o feminino" (NAU Editora, 2013).





































 
					 
					 
					 
					
