Xingu ganha réplica em 3D de gruta sagrada

Xingu ganha réplica em 3D de gruta sagrada

Por Liana Melo ODS 16

Gravuras rupestres de mito indígena destruídas a golpes de picareta traduzem tensão com os interesses econômicos que cercam o território do povo Wauja, do Mato Grosso. O ataque cultural a memória do guerreiro Kamukuwaká foi respondido com alta tecnologia

Publicada em 8 de outubro de 2024 - 00:05 • Atualizada em 5 de setembro de 2025 - 08:58

Era uma vez um guerreiro que causava inveja por sua força e beleza. Defendeu seu povo do ataque do inimigo com bravura, mas seu rival Kamo (o Sol) revidou, transformando a casa de Kamukuwaká em pedra. O guerreiro fugiu e se abrigou no céu, graças a ajuda de pássaros que abriram um buraco no teto da rocha. A gruta de Kamukuwaká, a casa atemporal desse personagem mítico do Parque Indígena do Xingu, no Mato Grosso, entrou para a cosmogonia e para os rituais indígenas. Grafismos rupestres na parede da caverna contam, ou melhor, contavam, as histórias do guerreiro e de seu povo – imagens de uma época que o Brasil, provavelmente, nem tinha sido descoberto.

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O tempo passou, mas os inimigos de Kamukuwaká continuam a postos e vivíssimos. Em pleno século XXI, seus adversários são bem reais, de carne e osso, e com interesses econômicos bem definidos. No lugar de transformarem a casa do guerreiro em pedra, como conta a cosmogonia indígena, agrediram seu povo, destruindo sua memória e atacando sua história ancestral. A golpes de picareta, um criminoso desconhecido destruiu as antigas gravuras rupestres que compõem a superfície da gruta.

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Kamukuwaká nos protege, então precisamos proteger Kamukuwaká e a forma como ele nos ensinou a estar no mundo

Piratá Waurá
cineasta, fotógrafo e educador do povo Wauja

Para os Wauja, um dos 16 povos do Parque Indígena do Xingu, a gruta de Kamukuwaká é sagrada. Assim como para outros povos do alto e médio Xingu, incluindo os Bakairi, que, apesar de não estarem no território indígena, vivem na região e compartilham da cultura xinguana.

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Seis anos depois do crime de vandalismo, os Wauja se vingam dos inimigos contemporâneos de Kamukuwaká – um contra-ataque que não poderia ser mais antenado com o século XXI. Recriaram o lugar sagrado em 3D em tamanho e peso idênticos aos da caverna original: oito metros de largura x quatro metros de altura e pesando uma tonelada. As gravuras rupestres foram restauradas digitalmente na superfície da gruta, que deixou de ser uma caverna de pedra para ser replicada, em um estúdio, em isopor e poliuretano. Para adquirir uma aparência mais realista,  a réplica ganhou pinceladas de pigmentos e vernizes.

Ataque cultural

Anciões ensinando sobre os significados das gravuras para crianças Wauja. (Foto: Gabriele Viega Garcia/ Acervo Instituto Homem Brasileiro/ 2014)

Numa expedição em setembro de 2018, os Wauja se depararam com uma cena de vandalismo — um ataque orquestrado a memória ancestral dos indígenas resultante das crescentes tensões entre as comunidades do Xingu e os interesses econômicos do agronegócio. Fazendas de soja, milho e algodão cercam todo o território e vêm colocando em risco os rios, as manchas florestais remanescentes e os modos de vida dos indígenas no território.

Historiadores tradicionais Wauja reconstituindo através da memória os desenhos sagrados para equipe da Factum Foundation construir a réplica da Gruta do Kamukuwaká. (Foto: Mafalda Ramos – 2018/ Acervo Associação Indígena Tulukai/Factum Foundation)

Os fragmentos dos desenhos da rocha foram deixados pelo caminho. Espalhados pelo chão, imagens destruídas de esqueleto de peixes, de mulheres e de outros elementos do cotidiano dos indígenas que representam a fonte de grande parte do repertório gráfico tradicional do Xingu – gravuras que, até hoje, são reproduzidos nas pinturas corporais, nas cerâmicas e nas cestarias, além de inspirar danças e canções.

Piratá Waurá, cineasta, fotógrafo e educador do povo Wauja. (Alaor Filho/ Fotos Públicas)

“Quando chegamos a gruta, vimos as marcas de ferramenta. As gravuras tinham sido arrancadas da pedra”, relembra Piratá Waurá, cineasta, fotógrafo e professor de Português para crianças na aldeia Piyulaga, uma das nove comunidades da Terra Indígena Batovi, o território original dos Wauja no Xingu, onde ele mora com a mulher e o filho.

Piratá levou um susto quando viu, pela primeira vez, naquela expedição em setembro de 2018, a cena de destruição em Kamukuwaká. A ida a gruta era para iniciar um projeto de preservação documental da caverna, porque sabiam que a gruta sagrada corria sérios perigos — infelizmente, não chegaram a tempo de impedir o vandalismo. 

“Foi só tristeza. Não tem outra palavra”, resume Piratá, que acompanhou todo o processo de feitura da réplica e enxerga na versão em 3D um ato de “resistência” do seu povo: “Kamukuwaká nos protege, então precisamos proteger Kamukuwaká e a forma como ele nos ensinou a estar no mundo”.

Foi Kamukuwaká que nos ensinou como devemos nos relacionar com o mundo à nossa volta, como respeitar um ao outro e como cuidar do meio ambiente

Akari Waurá

Curiosamente, a palavra usada na língua Wauja, do tronco linguístico Aruak, para referir-se a gravura (opopalapitse) é a mesma usada para a réplica e também para fotografia. “Todas essas coisas são imagens que são muito reais, presentes e exatas”, analisa o antropólogo americano, Chris Ball, que, há 20 anos, trabalha com esse povo: “A própria caverna de Kamukuwaká, uma caverna feita de pedra, é uma réplica da casa que Kamukuwaká construiu para viver nos tempos míticos e onde ele ainda vive”.

Nas inúmeras reuniões que se seguiram ao crime para pensar como reagir ao vandalismo, Piratá expressava repetidamente o mesmo questionamento, lembra, seis anos depois, a arqueóloga Gabriele Viegas: “Vocês destruiriam a escola que seus filhos vão buscar conhecimento? Não! Então, pergunto: por que querem destruir a escola das nossas crianças?” Ela assessora os Wauja desde meados dos anos 2000.

Foi em Aruak que Piratá contou o que viu aos seus parentes — os Wauja só falam português quando estão na presença de não-indígenas, que chamam de kajaopa. As crianças só começam a aprender o idioma com pouco mais de dez anos — na primeira infância falam na língua materna, para garantir a preservação da cultura.

Apagamento de Kamukuwaká

Akari Waurá, cacique da aldeia Topepeweke, uma das nove comunidades do povo Wauja, em frente a réplica em 3D da gruta de Kamukuwaká, instalada na aldeia Ulupuwene. (Alaor Filho/ Fotos Públicas)

“Kamukuwaká é a origem de todo conhecimento cultural. Foi Kamukuwaká que nos ensinou como devemos nos relacionar com o mundo à nossa volta, como respeitar um ao outro e como cuidar do meio ambiente”, resumiu o cacique da aldeia Topepeweke, Akari Wuará, sobre como seu povo interpreta o ataque que sofreu.

À época da destruição, a pesquisadora americana Emilienne Ireland, interpretou o ato como sendo “conceitualmente equivalente à profanação da Basílica do Santo Sepulcro, em Jerusalém, e à destruição de todos os exemplares da bíblia, ou seja, a eliminação do testemunho, do veículo e da mensagem”. Especialista em Antropologia Cultural, Ireland viveu entre os Wauja nos 1980.

Juntos, os grafismos rupestres gravados na parede da gruta são para os Wauja o que um livro é para uma não indígena: uma fonte de conhecimentos. São também através dos desenhos que o guerreiro Kamukuwaká, considerado pelos indígenas uma entidade extra-humana, ensina o ritual de furação da orelha – uma prática que ocorre na passagem da adolescência para a vida adulta e se perpetua até hoje, sendo transmitida de geração para geração para formar os futuros chefes, teria sido realizada primeira vez justamente na gruta de Kamukuwaká.

Fotos: Alaor Filho/Fotos Públicas | Arte: Pablo Candeia

Todos esses  ensinamentos de Kamukuwaká teriam sido apagados para sempre, não fosse o engajamento dos indígenas, de uma equipe independente de antropólogos e arqueólogos brasileiros e uma aliança internacional de artistas e pesquisadores estrangeiros. Além da parceria com duas instituições: a espanhola Fundação Factum, uma referência global em documentação de alta resolução de artefatos culturais e na produção de fac-símiles, como já fizera com a tumba do faraó Tutancâmon, e a inglesa People´s Palace Project (PPP), um centro de arte e pesquisa baseado em Londres.

Foi artista sonoro, compositor e cantor folk, o britânico Nathaniel Mann quem fez a conexão da Factum e da PPP com os Wauja, após uma residência artística na comunidade, em 2017. Foi nessa época que ele conheceu a história da gruta de Kamukuwaká, nunca mais esqueceu o que ouviu e, até hoje, se mantém conectado com esse povo.

 

Com a réplica, a preservação digital de Kamukuwaká estará garantida, o que vai permitir que as diferentes gerações dos povos indígenas continuem visitando a gruta e mergulhando na sua própria história. Os ensinamentos do guerreiro serão repassados ainda em dois outros projetos de realidade virtual: um para a comunidade e outro para os não-indígenas, que será apresentado na COP30 em Belém, em 2025.

É no centro da aldeia que as decisões são tomadas — as aldeias xinguanas reproduzem sempre o mesmo modelo, com as casas tradicionais, cobertas de sapé, em disposição circular e é no meio dela que fica a chamada casa dos homens. Todos os dias, faça chuva ou faça sol, caciques e anciãos se reúnem para decidir sobre todos os assuntos. Da realização de um wanaki, como chamam mutirão na sua língua, a construção de casas, de roça, até temas mais complexos, como foi o caso da parceria com a Factum e a PPP.

Patrimônio sem proteção

Historiadora indígena do povo Wauja, Yakuwipu Waurá, acompanhada do seu filho Ukuhun, em visita a gruta de Kamukuaká danificada. ((Foto: Piratá Waurá – 2024/Acervo ISA/IHB/ATIX))

Embarcada num navio cargueiro, a réplica em 3D da gruta de Kamukuwaká zarpou de navio de Valencia, na Espanha, cruzou o oceano Atlântico em direção ao porto de Santos, em São Paulo. A segunda etapa do trajeto foi feita de caminhão, do litoral paulista para a aldeia Ulupuwene, o novo endereço da gruta de Kamukuwaká. Ao todo, uma viagem de oito mil quilômetros.

A despeito de ser um sítio arqueológico desde 2002 e tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em 2016 — o tombamento mesmo foi em 2010, mas só foi publicado seis anos depois –, a caverna sagrada sempre viveu sob ameaça. O Iphan sequer chegou a instalar uma placa no local, avisando sobre o tombamento.

“Nossas políticas públicas são espelhadas na arqueologia europeia. O Iphan sabe tombar igreja, centros históricos… mas não sabe o que fazer com paisagens dos povos nativos”, analisa Ivã Bocchini, coordenador-adjunto do Programa Xingu do Instituto Socioambiental (ISA).

Já se passaram seis anos e os culpados pelo crime de vandalismo nunca foram identificados. A investigação criminal da Polícia Federal (PF) segue em segredo de justiça. O Ministério Público do Mato Grosso e a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) também se envolveram na investigação.

Primeira terra indígena

 

O Xingu foi a primeira terra indígena homologada no país, em 31 de julho de 1961. O então presidente Jânio Quadros cedeu a pressão do antropólogo Darcy Ribeiro e dos irmãos Orlando, Leonardo e Cláudio Villas-Bôas, criou o Parque Indígena do Xingu, mas demarcou uma área bem menor do que a superfície inicialmente proposta — antes da demarcação, o território ancestral dos povos xinguanos incluía toda a extensão dos rios formadores do rio Xingu, um dos principais afluentes do Amazonas.

Com a demarcação do território, a gruta de Kamukuwaká ficou fora do Parque Indígena do Xingu. A caverna está localizada dentro de uma fazenda de soja, o que vinha dificultando o acesso dos indígenas a gruta sagrada — a aldeia mais próxima ao local fica a 30km de distância.

Há cerca de dez anos, os xinguanos decidiram adotar a nomenclatura de Território Indígena do Xingu (TIX) no lugar de Parque Indígena do Xingu, por considerar que a mudança de nome condiz melhor com o cotidiano de luta e resistência do seu povo nas aldeias.

Os Wauja somam 700 pessoas. Sobreviveram a conflitos com fazendeiros e garimpeiros, além de epidemias. Nunca abriram mão dos seus conhecimentos fundamentais e das memórias ancestrais para a sua reprodução étnica e sociocultural. Não seria com essa tentativa de apagamento cultural, feito por um ataque calculado para destruir a memória dos indígenas, que os Wauja sucumbiriam. Kamukuwaká mudou de endereço, mas, para os indígenas, continua vivíssimo.

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Liana Melo

Formada em Jornalismo pela Escola de Comunicação da UFRJ. Especializada em Economia e Meio Ambiente, trabalhou nos jornais “Folha de S.Paulo”, “O Globo”, “Jornal do Brasil”, “O Dia” e na revista “IstoÉ”. Ganhou o 5º Prêmio Imprensa Embratel com a série de reportagens “Máfia dos fiscais”, publicada pela “IstoÉ”. Tem MBA em Responsabilidade Social e Terceiro Setor pela Faculdade de Economia da UFRJ. Foi editora do “Blog Verde”, sobre notícias ambientais no jornal “O Globo”, e da revista “Amanhã”, no mesmo jornal – uma publicação semanal sobre sustentabilidade. Atualmente é repórter e editora do Projeto #Colabora.

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