Excluídas da revolução digital

Vítimas de preconceito, mulheres se unem em coletivos para lutar por mais espaço na área de tecnologia

Por Elis Monteiro | ODS 5 • Publicada em 25 de junho de 2018 - 08:25 • Atualizada em 25 de junho de 2018 - 12:21

Sob o peso do machismo, mulheres lutam para conquistar espaço no universo da tecnologia. Foto: IHO / Science Photo Library
Sob o peso do machismo, mulheres têm baixíssima representatividade no universo da tecnologia. Foto: IHO / Science Photo Library

Mulheres não se interessam por tecnologia; não têm interesse por disciplinas ligadas à lógica; aquelas que escolhem a área são masculinas e feias; por serem muito emocionais, não se dão bem na área de exatas; TI não combina com mulher; elas não se encaixam.

Acredite: em pleno 2018, quando a busca pela igualdade de gêneros se expande mais e mais, ainda há quem concorde com todas essas baboseiras. Pior: as meninas que porventura possam vir a se interessar por seguir carreiras ligadas ao universo da Tecnologia da Informação (TI) são apresentadas a tais “verdades” e, assim, desmotivadas.

A consequência é que as mulheres ainda são raríssimas no segmento da tecnologia, mesmo com toda a expansão do mercado nas últimas décadas e a busca por profissionais do ramo explodindo em todo o mundo, inclusive no Brasil. Os dados são assustadores: de acordo com o site Code.org, referência no setor, empregos na área de computação irão mais do que dobrar até 2020, alcançando 1,4 milhão de vagas. O problema é que não há profissionais qualificados para suprir essa demanda e a estimativa é que apenas 400 mil vagas sejam preenchidas.

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A ONU está preocupada com a situação e, em 2017, por meio da ONU Mulheres, emitiu um alerta global. Segundo a instituição, as mulheres estão fora dos principais postos de trabalho gerados pela revolução digital

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Um dos motivos para a falta de mão de obra é a baixíssima participação feminina no segmento. Segundo o  Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep/MEC), no Brasil apenas 15% dos alunos de cursos relacionados à computação são mulheres. As que conseguem entrar muitas vezes não completam o curso – segundo artigo da Harvard Business Review, 41% das mulheres que trabalham com tecnologia acabam deixando a área, em comparação com apenas 17% dos homens. Nas carreiras STEM (sigla em inglês para Ciências, Tecnologia, Engenharia e Matemática), no Brasil, as mulheres representam apenas 33,1% dos graduados.

No Brasil, apenas 17% dos programadores são mulheres. Segundo a Unesco, a baixa participação é resultado de inúmeras barreiras impostas para as jovens que desejam adentrar o mercado. Resultado? Ficam apartadas das carreiras mais promissoras simplesmente por serem mulheres.

A ONU está preocupada com a situação e, em 2017, por meio da ONU Mulheres, emitiu um alerta global. Segundo a instituição, as mulheres estão fora dos principais postos de trabalho gerados pela revolução digital. De acordo com a entidade, em todo o mundo elas têm somente 18% dos títulos de graduação em Ciências da Computação e são, atualmente, apenas 25% da força de trabalho da indústria digital.

Yasmin Romi, estudante de engenharia da computação: militância pela inclusão de mulheres na área. Foto: Divulgação

Além da barreira que enfrentam no momento da escolha da profissão – dentro da própria família e da rede de amigos – as mulheres ainda precisam lidar com o machismo e o preconceito por parte de professores e colegas para se manter no mercado de TI e avançar.

Relatório da OECD (Organization for Economic Cooperation and Development, Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) intitulado “ABC da Igualdade de Gêneros na Educação: Aptidão, Comportamento e Confiança” desenhou um mapa das expectativas das famílias sobre carreiras a serem seguidas pelos filhos. No geral, os pais não conseguem identificar na informática uma carreira viável para suas filhas (ao contrário dos filhos).

Foi exatamente o que enfrentou Yasmin Romi, de 22 anos, quando anunciou para a família que iria prestar vestibular para Ciência da Computação.  “Apesar de ter ganho o computador de aniversário, nunca fui muito incentivada para a área da computação. “Durante o vestibular, fui desmotivada, pois meu pai e meu namorado na época não me viam naquela área e diziam que era uma área muito masculina. Não me vejo seguindo outra carreira, mas sei que, se eu tivesse sido levada pela opinião das pessoas à minha volta, nunca iria fazer o que  faço hoje”.

Yasmin está cursando o último ano da faculdade de Engenharia da Computação no Instituto Infnet. Amante dos computadores desde os 7 anos de idade, quando pediu (e ganhou!) seu primeiro micro, aos dez anos já tinha formação profissional em WebDesign e conhecimento em 11 linguagens de programação, como PHP e MySQL. A paixão é tamanha que, hoje, ela luta para incluir mais e mais mulheres no segmento. Este ano, junto com outros quatro rapazes, venceu a Maratona Maker Petrobras no evento Rio2C, na Cidade das Artes, no Rio. “Fui a única desenvolvedora do grupo e a única menina que ganhou entre os dois Hackathons que ocorriam no evento”, conta.

Em sua militância, Yasmin fundou o Clube de Robótica Infoboto e está idealizando o Coletivo Universitário Feminino Valerie Thomas (negra, inventora da tecnologia 3D), ao lado da colega Rayza Dutra, e organizando workshops de Arduino e Realidade Aumentada. Co-fundadora do Coletivo Universitário Valerie Thomas, Rayza Dutra também é co-fundadora do JSLadies BR, organizadora do JSLadies RJ e do Women Who Go RJ, LinuxChix RJ, PythOnRio, Women Techmakers RJ e Google Group Developers RJ (ambos programas independentes da Google).

Não para por aí, não! Rayza também é capitã e fundadora do Mozilla Campus Club Infnet, primeiro clube da universidade, além de vice-Presidente do Clube de Algoritmos Infnet. A ideia é promover uma inclusão cada vez maior. “Uma das minhas missões é ensinar a qualquer pessoa aquilo que sei. Todos os eventos que  faço têm como objetivo ser uma porta de entrada para quem não é de tecnologia e gostaria de ser, e de incluir qualquer pessoa no nosso universo”, diz Rayza.

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Toda iniciativa no sentido de aproximar a nova geração de mulheres – que ainda não escolheram suas profissões – de carreiras mais técnicas é válida.  É importante as pessoas escolheram suas profissões com base em seus talentos, sem preconceitos

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Rayza e Yasmin chamam atenção para a importância da conscientização das meninas quanto ao potencial das carreiras ligadas à tecnologia e para a necessidade de se falar sobre isso. Foi exatamente o que motivou o surgimento do movimento Programaria, um dos mais respeitados no país. O grupo, que ensina programação a mulheres, prega que, para uma menina, o desafio de aprender a programar começa antes mesmo de tentar. Falta divulgação de exemplos que as inspirem e sobram estereótipos que reforçam a ideia de que a tecnologia é um campo exclusivo para homens.

Diz o grupo que “a imagem de um programador é sempre masculina, branca e com ares de gênio. E é muito difícil se imaginar fazendo algo quando ninguém como você está fazendo”. De acordo com André Kischinevsky, pró-reitor do Instituto Infnet, toda iniciativa no sentido de aproximar a nova geração de mulheres – que ainda não escolheram suas profissões – de carreiras mais técnicas é válida.  “É importante as pessoas escolheram suas profissões com base em seus talentos, sem preconceitos. As meninas que gostam de lógica e matemática devem se sentir à vontade para escolherem a carreira de desenvolvedoras de software, e acredito que esse tipo de programa pode ajudar”, diz ele.

Há muitos fatores que levariam uma mulher a optar por uma área que não seja a de TI. No livro “Faça Tudo Acontecer – mulheres, trabalho e a vontade de liderar” a autora Sheryl Sandberg sai em busca de explicações para a baixa presença de mulheres na tecnologia.  Um dos exemplos usados por Sheryl: quando crianças, os meninos geralmente são incentivados a jogar videogame e a ter um contato maior com a tecnologia, enquanto as meninas são estimuladas a brincar de boneca e de cozinhar.

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Eu já ouvi ‘você não é inteligente’, ‘isso é coisa de menino’ e por aí vai… São coisas que desmotivam muito. Ouvi de um professor da minha antiga universidade que eu deveria sair da sala pois ‘mulheres dão problema’. E os colegas de sala também não nos respeitam

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Os dados confirmam a experiência que Rayza viveu na pele: de acordo com o Programaria, na escola 74% das meninas demonstram interesse nas áreas de Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática, mas, quando chega a hora de escolher uma graduação, apenas 0,4% dessas meninas escolhem Ciência da Computação.

Outro cenário analisado é a criação de um estereótipo em relação às mulheres da área de TI, de que são “masculinizadas” ou “feias”, o que pode acabar desmotivando mais mulheres a querer fazer parte da área, com medo de serem diminuídas a este esteriótipo. 

“Eu já ouvi ‘você não é inteligente’, ‘isso é coisa de menino’ e por aí vai… São coisas que desmotivam muito. Ouvi de um professor da minha antiga universidade que eu deveria sair da sala pois ‘mulheres dão problema’. E os colegas de sala também não nos respeitam. São muitos casos e muitos motivos, o que nos resta a fazer é fortalecer as mulheres que estão na área e preparar o terreno para as que estão por vir”, afirma Rayza.

De acordo com o Programaria, há várias respostas para a pergunta “Por que o mundo da programação parece estar tão distante de nós, mulheres?”. Depois de muita discussão e reflexão, o grupo identificou padrões diferentes de problemas que as mulheres costumam enfrentar na relação com a programação. Entre eles, 1) falta de visão das possibilidades, 2) dificuldade de acompanhar tendências; 3) barreiras culturais; 4) falta de auto-confiança; 5) barreiras para aprendizagem; 5) falta de conhecimento técnico e 6) “só sei que nada sei”.

Jovens do movimento Programaria: aulas de programação e batalha contra os estereótipos. Foto: Divulgação

Dentro de “barreiras culturais”se encaixariam várias das aflições enfrentadas por Rayza e Yasmin, como a falta de incentivo, a crença e que “TI é coisa de homem ou de japonês”, de que “é coisa de nerd”e outras crenças cristalizadas com a ajuda do estereótipo desenvolvido durante muito tempo, inclusive pela indústria do entretenimento. Vide o caso da cultuada série “The Big Bang Theory”, sobre um grupo de jovens cientistas, incluindo físicos e desenvolvedores, no qual as mulheres são estereotipadas e não pertencentes à área da TI (Bernardete é microbiologista, Amy é neurobiologista, Penny é “modelo atriz”).

“Quando começaram a produzir filmes de ficção científica e surgiu a cultura nerd, a representatividade era sempre masculina. Desde propagandas incentivando meninos a comprarem joguinhos de console até os primeiros filmes de Star Wars, onde só apareciam homens Jedi ou Sith lutando, só se via a imagem masculina atrelada à tecnologia e acredito que o número extremamente baixo de meninas nas áreas de computação foi consequência disso”, diz Rayza.

Como fez para lidar com o machismo e o preconceito e perseverado mesmo em cenário tão adverso? Segundo Rayza, a criação de comunidades de mulheres em torno da TI ajuda, e muito. “Um dos motivos para eu não desistir da minha graduação foi participar de comunidades que promovem, de alguma forma, a diversidade na área, tanto o aumento de mulheres quanto o de pessoas trans, negras e LGBT”, diz ela.

Entre as comunidades, Rayza cita Programaria, FemmeIT, Codamos, Women’s Tech e o Women TechMakers, apoiado pela Google. “Além disso, temos praticamente uma comunidade feminina para cada linguagem de computação: PyLadies, JS Ladies, RailsGirls, Women Who Go, Django Girls, PHPWomen, JavaGirl, entre outras. Elas servem para promover um ambiente confortável para troca de dúvidas e evitar mansplaining ou algum tipo de preconceito com mulheres. Em muitas das comunidades, homens são livres para participar, contanto que respeitem os valores do grupo”, conta Rayza.

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Elis Monteiro

É consultora e professora de Marketing Digital da Fundação
Getulio Vargas (FGV), do Instituto Europeu de Design (IED) e da Universidade Veiga de Almeida (UVA)

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